Belém é minha cidade. Embora não seja a cidade onde eu nasci, foi nela que planejei meus sonhos, sonhos não de todo colhidos.
Amo Belém pela sua exuberância, pelo cadinho de modernidade e provincianismo que a faz única e cativante.
Amo Belém pelas suas cores e pela vertigem do cinza que tenta violenta-la pelas garras inexoráveis do processo. Amo suas praças, seus casarões imponentes, seus bangalôs lustrosos, suas vielas, becos e suas memórias que, às vezes, se perdem na profusão de estilos.
Amo Belém pelo contraste, pela sua vocação, pelas águas, pelo rio escondido que quer se libertar vigoroso, mostrando para quem quiser ver suas agitadas águas míticas.
Amo Belém pela sua gente de sorriso largo e fácil, que enternece corações endurecidos e almas indóceis ao menear os quadris quando dança num ritual de sensualidade que envolve todos os elementos.
Amo Belém quando chove e quando esquenta.
Amo quando ela dorme agasalhada pelos seus túneis de mangueiras e quando ela acorda com o barulho dos humores das feiras.
Amo seus cheiros, seus cânticos, seus sabores, sua gabolice cabocla e suas deliciosas tardes molhadas. Amo Belém de tantas maneiras que não existe uma só que não exprima meu amor por ela.
Belém é minha cidade, minha terra, meu planeta insondável, minha paixão arrebatadora.
Amo tudo o que ela encarna. Amo suas virtudes e imperfeições, suas alegrias e desventuras, sua coerência cartesiana e suas estranhezas, sua sofisticação e sua breguice.
Em Belém as linhas do passado e do futuro se unem em tal sintonia que ela parece ser uma cidade atemporal, povoada de entes fabulosos.
Meu amor por Belém é perturbadoramente sereno, como sereno deve ser todos os amores verdadeiros. Porém, quando ela abre seus braços acolhedores, como mãe generosa, para abrigar aqueles que inadvertidamente a devastam e destroçam sua beleza, quando espíritos desataviados afrontam sua hospitalidade, e almas, sem amor, a preferem inculta e atrasada, meu amor se transmuda em orgulho e meus braços de remador se transformam em adagas mortais.
Mas minha alma é como tua alma, Belém, logo se enternece e perdoa; e o fogo que abrasa o coração logo se transforma em festa.
Belém é minha cidade, embora não sendo a cidade onde nasci, foi nela que plantei meus sonhos, não de todo colhidos.
Minha cidade é poderosa, não pela força de seu exército, porque minha cidade não possui exército. Ela também não é poderosa pela longevidade, como as cidades na Mesopotâmia e em Jericó, aquela cujas muralhas Josué derrubou milagrosamente com a força do som das trombetas de seus soldados. Essas cidades surgiram há mais de cinco mil anos e foram testemunhas de muitos milagres e da truculência dos homens por centenas de séculos. Não posso dizer que minha cidade é poderosa porque nasceu do crescimento de antigos impérios, como Babilônia, Roma, Antioquia, Cartago e Alexandria, pois ela sequer conheceu a noite da Idade Média, com sua impiedade, pestes e guerras santas.
Quando minha cidade nasceu, a terra já girava em torno do sol, as caravelas já levavam os homens por mares nunca antes navegados, a bússola magnética já desviava os olhos dos homens das estrelas, e já se sabia pintar em perspectiva.
Muitas cidades foram impulsionadas pelo crescimento do comércio, como Paris, Bagdá, Pequim e Istambul. O que não se pode dizer da minha cidade, pois ela nasceu com um propósito mais modesto. Belém surgiu para impedir que holandeses e ingleses invadissem o país, e tudo sob o olhar complacente dos índios Tupinambás que, na época, estavam mais interessados em adorar os trovões do que em entender a doidice por trás das razões comerciais do mundo.
Minha cidade também nasceu indiferente aos critérios quantitativos inventados para definir aglomerados humanos. Ora, se na Dinamarca 250 habitantes reunidos podiam formar uma cidade, na Islândia, bastariam 300. Na França, diferentemente, esse número teria que ser de no mínimo duas mil pessoas e, na Espanha, pelo menos dez mil para que essa comunidade pudesse ser definida como cidade.
Índios, animais domésticos, alguns soldados, uma natureza exuberante e um forte chamado Presépio, construído em cima de uma pequena península banhada por um rio que desemboca numa baía, foi suficiente para tudo começar; despertando, até hoje, a cobiça de corsários. Só que ela não pode mais contar com os índios dos primeiros tempos.
Minha cidade é orgulhosa e ativa como Veneza, e, por vezes, também submerge nas águas do rio. O mesmo rio que se transforma em rua e a abraça como mãe calorosa e ciumenta. As águas cobrem seus pés como um acalanto, um banho purificador que expõe suas feridas e reafirma sua vocação pelas águas.
A concepção urbanística tradicional define cidade através de três características: o número de habitantes em uma dada área, que nada mais é do que a densidade populacional; as conexões urbanas; e um estilo peculiar de vida. Nada a dizer sobre as duas primeiras, mas o estilo peculiar de vida da minha cidade é abundante em histórias.
Somos tão peculiares como comunidade que não existe nada igual no mundo. Aqui o povo se senta na calçada nos finais de tarde como se os relógios não marcassem o tempo e a vida nada mais fosse do que uma lenta progressão para o nada. Na verdade, somos hedonistas preguiçosos, criaturas intensas, indiferentes ao frenesi urbano que contamina o resto do mundo e sufoca as cidades com a pressa e o medo.
Embora precise admitir que a violência chamuscou esse nossos prazer de sentar suburbanamente na calçada como velhos compadres, ele ainda resiste, como uma marca indelével de nossa personalidade sociável. A boa fé é outra marca que nos diferencia dos demais. Há muito perdemos os traços desconfiados dos nossos ancestrais índios. Gostamos e confiamos nas pessoas logo à primeira vista.
Somos altruístas incorrigíveis, temos necessidade de festejar as amizades. Adotamos o amor incondicional como característica que cala fundo nossas almas desavisadas e da qual dificilmente nos livraremos. Claro, muitas vezes, nos decepcionamos, mas não importa, sempre estamos dispostos a recomeçar.
Mas, na verdade, a nossa característica mais marcante, aquela que a antropologia entende como nosso traço mais original, é o nosso apego desmedido, doentio às nossas raízes. Não somos seres migratórios. Nós nos alimentamos da mesma seiva nativa. Somos viciados pela nossa cidade.
Não trocaríamos nossa cidadezinha por nenhuma no mundo, nem mesmo por Londres, Paris ou Nova York.
Quando estamos distantes sentimos a febre dos deserdados, o banzo dos escravizados, o vazio endêmico dos exilados. Sentimos falta da umidade sufocante do nosso clima, do cheiro mítico desentranhas das marés. Queremos a ausência de pressa, a despretensão de andar pelo meio-fio, a volúpia centenária das mangueiras, as tonalidades do subúrbio e sua vocação divina para a esperança.
Queremos ouvir imediatamente os acordes das feiras e voltar a ver a agitação das velas dos barcos como pontos coloridos nas águas barrentas da baía que beija as margens da cidade. Sentimos falta do nosso Deus com a boca levemente suja de açaí e de todas as coisas miúdas que pontilham nosso imaginário: as miçangas, as cores vivas, as penas, as cuias, o rio que para nós é mais portentoso do que o Nilo, mais enigmático do que o Ganges, mais amado do que o rio Amarelo.
Minha cidade é poderosa não porque foi forjada pela Revolução Industrial, como Londres e Berlim, mas porque resiste a todas as forças que a fazem crescer e diminuir. Nela há um componente mágico que mesmo diante da ira dos homens e da sanha de alguns aventureiros, possibilita que ela resista e cante. Sim, ela canta; muitas vezes, sem sequer saber o porquê, mas ela nunca deixa de cantar. Em Belém mora uma gente encantada que não consegue desaprender a sorrir. Se lhe ferem de morte o coração, suas pernas vacilam e como lãs dobram, não como sinal de fraqueza, e sim para manifestar a intenção de perdoar. Por isso, somos poderosos, porque entendemos a força do perdão.
Temos até uma santinha só nossa que corrige nossos passos e nos auxilia nos momentos mais difíceis.
Não precisamos de exércitos, de conceitos urbanos, nem mesmo de revoluções. Temos braços fortes e um sentimento de decência que nos inspira e nos transforma em resistentes. Mas é a nossa fé no futuro, e o amor incondicional pela nossa cidade, que nos faz diferentes. Mesmo que muita gente duvide, eu guardo uma certeza comigo: somos a cidade mais poderosa do mundo.
Belém é a minha cidade. Embora não sendo a cidade onde nasci, foi nela que plantei meus sonhos, não de todo colhidos.
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